28 de novembro de 2010

Fanfiction: uma nova cultura literária

de Leds

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Tudo começou com as aventuras da nave estelar USS Enterprise,
da série norte-americana Jornada nas Estrelas.


“Naquele dia, Aurélia e Fernando Seixas completavam nove anos de casados. E nenhum casal no salão era capaz de empalidecer a felicidade estampada nos rostos dos dois. Aurélia, mesmo depois do casamento, ainda mantinha para si o título de Diva dos Bailes. Sua beleza, mesmo com os anos, era capaz de vencer até a mais fresca das jovens”. Essa citação trata da história de Senhora, obra publicada em 1875 pelo autor José de Alencar. Porém, esse trecho não foi escrito por ele. A autora atende pelo pseudônimo de Ladie, uma fic writer do vasto mundo da internet. Com um teclado na mão e uma ideia na cabeça, ela faz parte de um crescente grupo de escritores de fanfiction, novo fenômeno literário mundial que significa “ficção de fã” em inglês.

Tudo começou com a exploração do espaço “onde nenhum homem jamais esteve”. As aventuras da tripulação da nave estelar USS Enterprise, enredo da série de TV norte-americana Star Trek (conhecida no Brasil como Jornada nas Estrelas), foram o ponto de partida para uma nova forma de viagem decolar: a cibernética. Com a popularização da internet nos anos 90, o mundo passou a ser o limite de uma nova cultura literária, iniciada timidamente em meados do século passado.

Após o fim abrupto da série em 1969, surgiram os inconformados fic writers: fãs de uma determinada história de ficção, que imortalizam obras mesmo depois de finalizadas por seus reais autores. A partir de então, os espectadores da saga estelar passaram a escrever romances e contos sobre aquela trama. Uma revista chamada Spockanalia – em referência ao personagem Spock – chegou a ser lançada com essas novas histórias e distribuídas nas convenções de fãs.
Por meio da internet, os escritores encontraram um meio gratuito, prático e interativo para divulgarem seus textos de diversos novos assuntos. Sites, fóruns, blogs, comunidades em sites de relacionamento, como Orkut e Livejournal, tornaram-se um mercado editorial digital.

Embora remeta sua existência aos Estados Unidos, o fenômeno já alcançou o nível nacional. Foram as aventuras de Harry Potter que propagaram as fanfictions no Brasil, a partir do ano 2000. Desde a série de livros sobre o jovem bruxo até obras típicas da cultura brasileira, como o Sítio do Pica Pau Amarelo e Senhora, as fanfictions tornaram-se um fenômeno literário entre os internautas aficcionados do país, malgrado seja pouco conhecido na comunidade educativa.

Para a autora do livro pioneiro O Fênomeno Fanfiction: novas leituras e escrituras em meio eletrônico, Maria Lúcia Bandeira Vargas, expressar-se através da fanfiction pode ser um bom jeito de melhorar as técnicas de escrita e estimular o gosto pela leitura. “Sem dúvida! Principalmente quando o fic writer associa-se a comunidades online que têm um bom nível de troca no que se refere à leitura. Pode ser uma porta para a abertura de largos horizontes”, explica. Ela acrescenta que a interação entre os escritores e seus beta-readers – os revisores de textos – pode ser uma forma de aprimorar seus textos. “É um trabalho sensacional, indicativo da seriedade dos fandons que o exigem”, ressalta. Seriedade essa constatada através de escritores e beta-readers como a advogada chamada pelo pseudônimo de Kardia no Scorpio. “Para mim, a escrita é sobretudo reflexão, trabalho intelectual mesmo, não dá para pensar que é uma atividade somente divertida. Escrever é um exercício mental e também de memória e vocabulário, sem falar que é preciso, no mínimo, ter noção de estruturação de parágrafos, uso de tempos verbais, concordância nominal e verbal entre outros detalhes”, narra.

No entanto, ainda há acirradas críticas acadêmicas a respeito da falta de conteúdo intelectual nas fanfictions. Vargas afirma que “a Academia [Brasileira de Letras] tende a rejeitar aquilo que desconhece e a fazer generalizações perigosas”. Os escritores concordam. “É falta de conhecimento de quem comete esse tipo de crítica sem conhecer o universo real dos fic writers que podem se intitular assim com propriedade”, diz Kardia. A estudante de História e escritora, Marcia Dantas, lamenta a dificuldade de quebrar esse preconceito. “Claro que nós podemos achar umas coisas horrorosas. Fanfics escritas em ‘internetês’, ‘miguxês’ ou com um português terrível. Porém, quem realmente leva isso à sério preocupa-se em escrever com um português correto, com coerência e muita criatividade. Já encontrei coisas geniais e muito bem escritas, que ultrapassam até muitos livros que são campeões de vendas”, desabafa.

Ademais, há um recorrente conflito jurídico entre as garantias constitucionais dos direitos autorais e da liberdade de expressão. Em declaração publicada no site da rede jornalística inglesa BBC, a autora dos livros de Harry Potter, J.K. Rowling, disse se sentir lisonjeada por ter sua obra reescrita pelos fãs. Por outro lado, a autora de Entrevista com o Vampiro, Anne Rice, desaprova a escrita de ficção baseada em seus livros. “Os personagens são protegidos pelos direitos autorais”, afirma em seu site oficial. Segundo o professor de Direito Civil Leonardo Weber Ribeiro Araújo, não há violação de propriedade intelectual se não tiver comercialização, sobretudo se o escritor acrescentar nota explicativa que credita a obra ao verdadeiro autor. Entretanto, quando se trata de textos sobre pessoas reais, chamadas de real life person, o professor adverte: “parece-me aplicável o que consta do art. 20 do Código Civil, que prevê ‘salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais’”. Neste caso, semelhante às biografias não autorizadas sobre celebridades, o debate gira em torno do direito de imagem versus direito à liberdade de expressão.

Para apimentar mais a discussão, existem os Projetos de Leis nº 76, 89 e 137, que tramitam no Congresso Nacional a respeito de crimes na área de informática, cujo relator é o senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG). Aberto a inúmeras interpretações, o art. 285-B, em tese, criminalizaria atividades corriqueiras na web, como a produção de fanfictions. Em 2009, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, durante o 10º Fórum Internacional de Software Livre, em Porto Alegre, afirmou que os referidos projetos não visam a proibir os abusos na internet, mas objetivam fazer censura.

Polêmicas à parte, o jornalista Márcio Padrão, autor do Ensaio sobre a fanfiction como objeto de comunicação e sociabilização, acredita que essa nova produção tem mais prós do que contras. “Creio que a prática de fanfiction seja sim bem válida para ampliar os horizontes culturais dos jovens”, constata.

3 comentários:

  1. Essa Leds é fogo, viu??

    Claro que eu sei da capacidade dela como escritora, mas eu nem esperava isso tudo na sua matéria sobre as fanfictions na cultura popular e a sua aceitação pela Academia.

    Mais uma vez, meus parabéns, Leds.

    Esse campo precisa cada vez mais de material de qualidade assim para o Brasil ver a força dos ficwriters.

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  2. Muito bom! É algo inevitável, tentar marginalizar a criatividade alheia. Além do que, é ter uma mente muito fechada supor que os escritores de fanfics querem de alguma forma ganhar sucesso sobre histórias de outros. Eu acho isso um absurdo, por que como o próprio nome já diz, é um fã. Fãs que escrevem por que AMAM tal obra ou coisa. Pra mim, honestamente, deveriam é agradecer esse tipo de coisa, alguém que goste tanto de algo a ponto de gastar seu tempo, sua criatividade escrevendo sobre isso e sem busca de nenhum fim lucrativo. Eles podem tentar, mas duvido muito que consigam reprimir essa massa enorme que são os ficwriters, mundialmente falando.

    Fanfics <3

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  3. Great one!

    Parabéns, Leds! Matéria perfeita e muito bem escrita.

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